projeto

Apresentação


O projeto Fazer viver trata a etnografia como modo de aproximação para conhecer e construir sentidos, e vincula esse modo de aproximação e construção de sentido com a produção artística contemporânea. Letícia Panisset, ceramista brasileira com experiência em pesquisa etnográfica, e Émilie Renault e Ghislain Botto, artistas franceses do coletivo EthnoGraphic, se juntam para pesquisar modos de vida no munícipio do Serro, Minas Gerais. Queremos compreender algo sobre os sentimentos das pessoas residentes nessa região, sua relação com seu território e paisagem, com seu fazer, bem como suas percepções e desejos em relação à vida e ao mundo.

Utilizamos o método de análise e de interpretação da etnografia e, de maneira especulativa — porque exposta ao debate com os participantes e à construção progressiva de sentidos — propomos, como sistematização, ensaios visuais, os quais se desenham como espaços sensoriais criados através de uma teia imagética conectando histórias, mapas de trajetórias, desenhos, fotos, vídeos e instalação cerâmica.
Esses ensaios serão apresentados na região, depois em Belo Horizonte e, possivelmente na França e Suíça. Finalmente, a edição de um livro potencia o projeto, como mais uma forma de exposição e ampliação de publico.

Por que era que eu estava procedendo à-toa assim? Senhor, sei? O senhor vá pondo seu perceber. A gente vive repetido, o repetido, e, escorregável, num mim minuto, já está empurrado noutro galho. Acertasse eu com o que depois sabendo fiquei, para de lá de tantos assombros… Um está sempre no escuro, só no último derradeiro é que clareiam a sala. Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia. (1)


O Serro é um dos mais antigos municípios de Minas Gerais e tem vivo e bem conservado seu patrimônio imaterial. Encontramos aí um senso de identidade e sentimento de pertencimento muito próprios. (2) Hoje, porém, existe uma forte inquietação sobre transformações em curso. Podemos pensar na região como ‘entre território e fronteira’, conforme a perspectiva da ‘maldição dos recursos’ de Macedo (3). O interesse crescente de grandes mineradoras introduz o risco da transformação do município em fronteira do capitalismo primitivo caracterizando-se “dissipação de naturezas”, e, consequentemente de vidas (3).

Fazer viver propõe uma realização artística de uma forma de adentrar a perspectiva do outro, no seu lugar e tempo. Hall Foster nos alerta para os riscos desse ponto de vista na arte contemporânea.
Com grande cuidado metodológico, desenhamos um processo continuo/cíclico de encontros, relacionamento, partilha, reflexão e complexificação de sentidos.
Nos dedicamos a passar tempo com as pessoas nos seus locais de vida, trabalho e estudo à fim de conhecê-las e ouvir suas histórias.

Observamos, registramos falas e fazeres, fotografamos, filmamos, e desenhamos. Propomos ateliers de cerâmica como espaços de criação conjunta, atentando para a cultura do barro e da cerâmica e seu significado para o senso de identidade dos habitantes da região.
Desenvolvemos estratégias continuas de participação e compartilhamento, em especial por meio de plataforma digital e de exposições itinerantes no Serro, seus distritos e comunidades quilombolas. A exposição em Belo Horizonte, desloca o trabalho para fora da região e para outros públicos, movimento acentuado pela edição do livro.

Àquela altura, porém, eu tinha de escolher o terreno onde localizar as minhas histórias. Podia ser Barbacena, Belo Horizonte, o Rio, a China, o arquipélago de Neo-Baratária, o espaço astral, ou, mesmo, o pedaço de Minas Gerais que era mais meu. E foi o que preferi. Porque tinha muitas saudades de lá. Porque conhecia um pouco melhor a terra, a gente, bichos, árvores.” (4)

justificativa


Cuidadosamente juntando etnografia e arte, Fazer viver pretende dar forma e relevo artísticos aos modos de vida de uma região específica e em transformação, Há mais de dez anos o Coletivo EthnoGraphic dedica-se, com sucesso e delicadeza, a exercícios dessa natureza na França e na Suíça.
Com Leticia Panisset, associam-se competências, vivências e sensibilidades.
Ao pleitear a aprovação desse projeto, muda-se de lugar, de recorte. Des-localiza-se a pesquisa das áreas urbanas da Europa para o interior de Minas.

Como nos diz o filósofo e poeta Antônio Cícero (5), a arte tem a capacidade de subverter e expandir nossa maneira usual de apreender e sentir o mundo/a vida. Fazer viver contribui à formulação de proposições artísticas contemporâneas que se interessam por engajar modos de fazer artísticos na ‘relação entre o fazer, o ser, o ver e o dizer’ (6). Como realização formal, propomos a criação de uma “paisagem sensível” (7), um lugar “capaz de ativar um estado sensorial no outro”. Dessa maneira e ao mesmo tempo, propomos a construção de um espaço público, entendido como espaço de diálogo. Como escreve Rancière, citado por Fabiana Tasca (8), ‘a arte é politica justamente porque apresenta outras diagramações para o sensível, recortes de espaços e tempos, formas de estar juntos ou separados’.

Somos representantes quaisquer desse povo bárbaro e exótico proveniente de além-mar, que espanta por sua absurda incapacidade de compreender a floresta, de perceber que “a máquina do mundo” é um ser vivo, composto de incontáveis seres vivos, um superorganismo constantemente renovado pela atividade vigilante de seus guardiões invisíveis, os xapiri…


Viveiros de Castro na sua introdução ao livro A queda do céu (9), reitera o alerta de Davi Kopenawa para as avassaladoras consequências da incompreensão do outro. O sentido do espaço público é a possibilidade de convivência da diferença, onde a alteridade é fundamental para a relação das diferenças10.

Nosso projeto trata e traz um questionamento do senso de pertencimento ao ‘lugar’, aqui entendido como conceito antropológico, isto é, lugar como espaço praticado (10). Nossa expectativa é que, ao ‘tomarem corpo’, os sentidos por nós reconstruídos e partilhados provoquem algum ‘efeito’ sobre a realidade e não simplesmente a reflitam6. Porque, nas palavras do poeta (11):

Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso
(E, sem dúvida, sobretudo o verso)
É o que pode lançar mundos no mundo.

1 Rosa, João Guimarães, «Grande Sertão : Veredas». 36ª impressão, Editora Nova Fronteira, 1988
2 Maria Coeli Simões Pires sugere que a geografia do Serro conduziu ao isolamento da região apos o fim do ciclo do ouro, contribuindo para a essa relativa preservação de modos de vida.
(“Memoria e arte do queijo do Serro : o saber sobre a mesa. 2013. Belo Horizonte: Editora da UFMG).
3 Macedo, Eric. « A maldição dos recursos ». 2017. Piseagrama. www.piseagrama.org/maldicao-dos-recursos
4 Rosa, João Guimarães, Carta à João Conde
5 Manifestação oral. Mutações : dissonâncias do progresso. Belo Horizonte, MG. 11.10.2017
6 Rancière, J. Le partage du sensible. www.multitudes.net/le-partage-du-sensible/
7 Peixoto, Marcelino e Arnaldo, Luís. Ocupação por projeto. Livro de artista. 2017 Pp.89
8 Tasca, Fabiola. In Marcelino Peixoto e Luis Arnaldo. Ocupação por projeto. Livro de artista. 2017.
9 in Kopenawa, Davi e Albert, Bruce. A queda do céu : palavras de um xamã yanomami. 2010.
Companhia das Letras. São Paulo, Brasil.
10 Wisnick, Guilherme. Manifestação oral. Mutações : dissonâncias do progresso. Belo Horizonte, MG. 05.10.2017.
11 Caetano Veloso.